"A meta final do JUDÔ KODOKAN é o aperfeiçoamento do indivíduo por si mesmo, desenvolvendo um espírito que deve buscar a verdade através de esforço constante e da sua total abnegação, para contribuir na prosperidade e no bem estar da raça humana" "Nada sob o céu é mais importante que a educação. Os ensinamentos de uma pessoa virtuosa podem influênciar uma multidão; aquilo que foi bem aprendido por uma geração pode ser transmitidas a outras cem." Jigoro Kano

Aprendendo Mais Sobre a "Gogoplata" por Kendall Shields


Como a maioria já deve saber, Dave Meltzer cobre o lado financeiro do MMA melhor do que qualquer outro jornalista. Muitos também já devem ter percebido que o conhecimento técnico dele sobre o esporte ainda é um vocabulário limitado, sempre expandindo. Lógico que isso é verdade de todos nós - leigos, fanáticos ou lutadores treinando grappling ou trocação. MMA é um esporte caracterizado por inovações técnicas estonteantes e uma evolução incansável, de tal forma que todos nós já sentimos que ficamos para trás uma hora ou outra. Todos já passamos por momentos onde pensamos "Peraí, o que foi isso" quando vemos certas técnicas pela primeira vez. Porém, ao contrário da maioria de nós, Dave Meltzer infelizmente tem seus momentos "Peraí, o que foi isso" gravados para a posteridade. A edição de 23 de junho do Wrestling Observer Newsletter tem um dos bons.

Cobrindo o evento Dream 4 no dia 15 de junho, Meltzer oferece a seguinte análise ligeiramente confusa do final da luta entre Shinya Aoki e Katsuhiko Nagata, para o GP dos pesos leves: "Aoki ficou por cima, causando pouco dano até utilizar o que foi chamado de uma gogoplata a partir da montada, mas na verdade não foi, porque foi como um estrangulamento de braço, mas usando a canela ao invés do braço."

Peraí. Como assim?

Antes de continuar, quero deixar bem claro que minha intenção não é ridicularizar o Dave Meltzer, ou menosprezar suas capacidades como jornalista de MMA. Apenas aproveito-me de seu comentário confuso e iludido como um gancho para falar desta técnica que deixou muitos desnorteados. Aqui está a luta em questão, com comentários em inglês (uma versão de qualidade melhor com comentários em coreano está disponível aqui), e aqui vemos uma imagem da técnica em si. Como podem ver, bem como Meltzer descreve, a técnica ssemelha-se a um estrangulamento de braço usando a canela. Isso, por definição, faz da técnica uma gogoplata.

A confusão começa com o Bas Rutten aos seis minutos do vídeo da luta. Pouco antes da interrupção, ele chama a técnica de "uma omoplata por cima", e diz que ele nunca viu algo igual. Logo depois, ele diz que é parecido com o golpe usado por Nick Diaz contra Takanori Gomi na vitória de Diaz (ops, no contest) sobre o campeão dos leves do Pride. A essa altura, Bas percebe seu erro e corrige sua análise, dizendo que devia ter dito "uma gogoplata por cima", não uma omoplata. Foi a primeira vez que Bas viu esta variação específica da gogoplata, e imediatamente ele a considera uma versão superior, "porque não há espaço para a cara recuar". Cara, cabeça, seja o que for. Bas hesitou por um breve instante, mas acertou sua análise, como é de se esperar de quem é provavelmente o homem mais incrível de todos os tempos.

Mesmo assim, há confusão. Michael David Smith (que apoiou, mas não escreveu o artigo mais ridículo que jamais lerão sobre MMA) disse que o golpe do Aoki "é tão inovador que ninguém tem certeza do nome". Ele também indicou-nos a Jim Murphy, que aparentemente escreveu em seu blog Savage Science que a finalizaçào foi uma omoplata por cima (desde então, Murphy corrigiu o blog e chamou o golpe de "gogoplata"). O site MMA Core chamou o golpe de "locoplata" (uma técnica relacionada no arsenal de Eddie Bravo), antes de sucumbir ao consenso geral da gogoplata. Dou o braço a torcer: Sherdog chamou o golpe de gogoplata desde o início. Não que eles sejam infalíveis, já que recentemente registraram a vitória maçante de Hidehiko Yoshida sobre Maurice Smith por kesa gatame como uma "torção de pescoço", mesmo quando Smith admitiu na conferência após o evento (disponível no próprio Sherdog) que um estrangulamento o forçou a bater, não uma torção. O usuário do site Bloody Elbow chamado TannerMatthews recebe a medalha de ouro, pois além de identificar a técnica corretamente de cara, ele encontrou um vídeo do Eddie Bravo demonstrando o golpe no próprio Aoki. Na verdade, ele ganha uma medalha e um troféu por utilizar a verdadeira terminologia Eddie Bravo. "Esta técnica é aplicada a partir da 'Gangsta Lean', ou 'Montada Macaco'". E por que não?

Faz sentido que o resto do mundo não é TannerMatthews, e portanto não souberam imediatamente o que o Aoki estava fazendo - mesmo não sendo a primeira vez que ele finalizou um oponente com essa técnica. Porém, o exemplo anterior aconteceu no Shooto, em uma luta de puro grappling. A gogoplata só prendeu a atenção do mundo de lutas a partir do momento em que Aoki demoliu Joachim Hansen no evento Otaku Matsuri 2006 do Pride. Desde então, a popularidade desta técnica viveu uma ascensão meteórica devido ao seu uso por Nick Diaz e (estranhamente) Brad Imes, que finalizou dois oponentes em seis semanas com gogoplatas, mostrando que a técnica é viável não só em competições de grappling, mas também no MMA.

Muitos consideram Aoki o primeiro lutador a finalizar uma luta de MMA com uma gogoplata, mas não é verídico. A primeira ocorrência registrada que conheço é esta luta de Ryusuke "Jack" Uemura, divulgada no Youtube em março de 2006. São nove meses antes da luta Aoki/Hansen, no mínimo. Infelizmente, desconheço a data da luta, o nome do oponente ou até mesmo o nome do evento. Quem tiver mais informações, entre em contato.

Porém, tudo isso é relativamente recente. Qual é a origem real da técnica? Atualmente, a gogoplata é ligada ao Eddie Bravo e o sistema que desenvolveu chamado "rubber guard". É um sistema incrivelmente abrangente e completo, cujos detalhes não ficam claros nos períodos de 5 segundos onde um lutador X do UFC "brinca de rubber guard", agarrando o tornozelo, tomando uma cotovelada na cara e imediatamente mudando de idéia. A comunidade do MMA online diverte-se com variações de uma piada que não morre: dizer que Eddie Bravo inventou ou diz ter inventado cada posição e técnica concebível no submission, desde a meia guarda à gogoplata. Na verdade, Bravo nunca disse que inventou a gogoplata. Ele apenas criou uma guarda que facilita técnicas como essa. No livro Jiu-Jitsu Unleashed, Bravo escreveu: "A Go-Go Plata: roubei esta técnica do fenômeno de jiu-jitsu Nino Schembri, pois foi fácil perceber as inúmeras oportunidades para sua aplicação durante a transição para uma Omoplata."

Beleza, mas como será que Schembri descobriu a técnica? Ao menos uma vez, Schembri (cujo vídeo instrucional da omoplata é absolutamente essencial para interessados nessa técnica) diz ter "inventado" a gogoplata. Mais tarde, ele admite que sem dúvida, alguém em algum lugar do mundo deve ter bolado a técnica antes dele, ou alguma variação dela. Por sinal, isso é a pura verdade.


Deixo bem claro que não duvido que Schembri desenvolveu a técnica e a posição adequada de forma independente. Não proponho que ele "roubou" a técnica de alguém. Longe disso! Meu objetivo é simplesmente desvendar a história da técnica até sua origem longínqua. Para isso, precisamos revisitar uma época muito antes de Nino Schembri. Antes até mesmo do jiu-jitsu brasileiro. É preciso voltar nossos olhos ao judô. Se fosse possível, seria ainda melhor analisar o koryu do jiu-jitsu tradicional que deu origem ao judô, mas essa proposta é menos plausível.

O livro The A-Z of Judo de Syd Hoare, cuja intenção é ser "um manual abrangente das técnicas tradicionais do judô", demonstra o seguinte estrangulamento, onde "o atacante joga sua perna esquerda por cima do braço direito do oponente, para colocar seu tornozelo e a parte inferior da canela abaixo do queixo e prender o braço". Esta técnica é apresentada com o nome kakato jime ou kagato jime, cuja tradução literal é "estrangulamento de tornozelo". Hoare menciona que conheceu a técnica através do livro My Method of Judo("Exclusivo! Obra de mestre!") de Mikonosuke Kawaishi, publicado em 1955. O livro de Kawaishi não está mais à venda, e é uma raridade. Inexplicavelmente, acho que apaguei minha cópia eletrônica da versào francesa, o que é basicamente uma catástrofe monumental. O kagato jime também é mencionado no livro Judo On The Ground: The Oda Method de E.J. Harrison, publicado em 1954 (baseado em uma versão japonesa mais antiga).

A seguir, duas imagens relevantes usadas no livro, tiradas de um site holandês (Sabiam que os holandeses tem o índice mais alto de participação no judô per capita no mundo inteiro? Mais alto do que o do Japão! Surpreendente, mas é a verdade.)
























Além da primeira imagem (um kagato jime) ser um gogoplata em todos os sentidos exceto o nome, não acham que a segunda imagem é extremamente parecida com o que Eddie Bravo chama de posição básica (básica para o Eddie Bravo, lógico) de "mission control", como um membro do Sherdog mencionou quando estas imagens foram descobertas pelo mundo de lutas online? Um segundo. Falando nisso, o que será que o Kyuzo Mifune está armando quando encaixa o ude gatame aos 45:35 de The Essence of Judo?

Certamente não quero incentivar outra discussão inútil de BJJ vs. judô. Minha intenção não é dizer que estas técnicas sempre fizeram parte do judô newaza, e que os expoentes modernos do jiu-jitsu brasileiro não contribuíram nada a elas. Muito pelo contrário. Visite uma academia de judô e peça ao sensei para demonstrar um kagato jime. É muito provável que ele não fará a mínima idéia do que você está falando. Usando a mesma estratégia, peça para demonstrar um sankaku garami (o nome japonês da omoplata) e sua chance de sucesso será bem melhor, mas nada é garantido. Meu próprio sensei é um quarto dan vitorioso, de grande respeito e conhecimento, e ele só tinha ouvido falar do kagato jime, mas só aprendeu as nuances de sua aplicaçào recentemente. Por ter ouvido falar da técnica, ele já sabe mais do que a maioria. É uma técnica tradicional do judô que desapareceu quase completamente.

Schembri diz que, de acordo com tudo o que sabe, ele inventou a gogoplata, mas que alguém provavelmente utilizou a técnica antes dele. É uma declaração perfeitamente aceitável, e tem mérito. Embora digam que não há nada de novo no mundo, imagino que todos que já praticaram alguma forma de grappling descobriram uma técnica que nunca foi ensinada a eles, e mais tarde percebem que é uma técnica legítima e conhecida. A sensação "Será que isso existe? Ok, existe." Durante um treino ontem à noite, jurei que tinha criado algo interessante e criativo durante o randori ne waza, mas percebi que Kyuzo Mifune roubou a técnica debaixo do meu nariz quando cheguei em casa e assisti alguns vídeos. Vi uma técnica que descobri acidentalmente utilizada por um homem de 65 anos em 1948 (esses décimo dans sabem o que fazem mesmo). Coisas assim acontecem. Deve acontecer sem parar no caso de alguém com a criatividade do Nino Schembri, e menos para meros mortais como, por exemplo, eu.

Repito novamente, para não deixar dúvida. Não digo que Bravo, Schembri, Aoki, Diaz ou Imes (um desses não pertence no grupo) "roubaram" algo ou alguém. Nem penso em algo parecido, explicitamente ou implicitamente. Dada a natureza do mundo de grappling, e as formas aparentemente ilimitadas (mas finitas, na verdade) de forçar um oponente a bater com um estrangulamento ou torções, descobertas independentes são inevitáveis. Um fato inquestionável é a realidade que as adaptações modernas do rubber guard para a gogoplata ou kagato jime expandiram as possibilidades da técnica exponencialmente, basicamente ressuscitando a técnica do mundo dos mortos.

Isso é a parte que realmente me interessa. Quando vemos a gogoplata (que claramente é a nova moda no MMA graças à finalizações estilosas como a de Aoki contra Nagata, que deixou os espectadores de queixo caído), não vemos uma técnica nova, e sim uma velha técnica transformada em algo absolutamente inédito pelos méritos de inovações modernas. O kagato-jime é uma técnica que sempre fez parte, mas nunca foi essencial ou arsenal tradicional do judô ne waza. Agora, voltou a fazer parte do vocabulário atual do grappling por um caminho gloriosamente tortouso: um redescobrimento brasileiro da técnica, modernizado por um americano, cujo sistema é exemplificado em sua forma mais completa no jiu-jitsu brasileiro de um judoka japonês.

"Existem modas no judô," escreveu Katsuhiko Kashiwazaki, especialista em ne waza e campeão mundial de judô de 1981. "Às vezes eu me pergunto se existe algo realmente novo no mundo!" Bem, existe. Mais ou menos. Só é meio complicado.
Após a publicação do artigo, o usuário MecGojira do site Total MMA revelou que a luta mencionada no texto é:

Ryusuke "Jack" Uemura vs. Isao Terada
ZST: Grand Prix 2 - Final
23 de janeiro de 2005

-Aqui está a página do "My Method of Judo", do Kawaishi sobre o kagato-jime.No mundo nada se cria, tudo se copia...



Fonte: http://www.total-mma.com/category/kendall-shields/
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